
VER VENDO
(OTTO LARA REZENDE)
... De tanto ver, a gente banaliza o olhar... V� n�o-vendo...
Experimente ver pela primeira vez o que voc� v� todo dia, sem ver...
Parece f�cil, mas n�o �...
O que nos cerca, o que nos � familiar, j� n�o desperta curiosidade...
O campo visual da nossa rotina � como um vazio...
Voc� sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta...
Se algu�m lhe perguntar o que voc� v� no seu caminho, voc� n�o sabe...
De tanto ver, voc� n�o v�...
Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do pr�dio de seu escrit�rio...
L� estava sempre, pontual�ssimo, o mesmo porteiro...
Dava-lhe um bom dia e �s vezes lhe passava um recado ou uma correspond�ncia...
Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer...
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia?
N�o fazia a m�nima id�ia...
Em 32 anos, nunca o viu...
Para ser notado, o porteiro teve que morrer...
Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser que tamb�m ningu�m desse por sua aus�ncia...
O h�bito suja os olhos e lhes baixa a voltagem...
Mas h� sempre o que ver...
Gente, coisas, bichos...
E vemos? N�o, n�o vemos...
Uma crian�a v� o que um adulto n�o v�...
Tem olhos atentos e limpos para o espet�culo do mundo...
O poeta � capaz de ver pela primeira vez o que, de t�o visto, ningu�m v�...
H� pai que nunca viu o pr�prio filho...
Marido que nunca viu a pr�pria mulher (e desconhece os seus segredos e desejos), isso existe �s pampas...
Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos...
� por a� que se instala no cora��o o monstro da indiferen�a...

